ter, 13/11/12
Por Gustavo Poli 
Na madrugada do 
último domingo, no Novo Leblon, condomínio 
da Zona Oeste do Rio, a advogada mineira Denise Rocha Brandão brigava contra os 
fogos de artifício. Em seus braços, Cecília, sua filha de seis meses, tentava 
dormir. Denise esbravejava contra o ruído – mas mentalmente sorria. Pensava nos 
milhares de pés que pulavam no gramado das Laranjeiras.  Torcedora do 
Fluminense, Denise carregava um pequeno segredo sobre aquele gramado.
Agora que o chope tricolor já foi bebido (e desbebido), que a alegria já se 
diluiu, que a felicidade tetracampeã já passou de dia seguinte para sonho 
seguinte… é hora de contar a história que aconteceu debaixo da multidão. Debaixo 
daqueles milhares de pés que invadiram o campo da Rua Álvaro Chaves na madrugada 
de segunda havia um tricolor que não viu o Fluminense ser campeão. Não com esses 
olhos que a terra há de devorar. Ali, debaixo daqueles milhares de pés que 
pulavam, sambavam e se moviam… jazia Antonio Carlos Teixeira Rocha. Ou metade 
dele.
O mineiro Antonio 
Carlos Rocha nasceu em Ubá em 1945 e se tornou tricolor aos 12 anos por 
influência de um tio. Cresceu, se mudou para Juiz-de-Fora, se casou e teve três 
filhos: Denise, Simone e Vítor. Como torcedor viu muitos títulos. Viu o Robertão 
de 1970. Viu a máquina de 1976. Viu o Brasileirão de 84. Viu o tri de 2010. 
 Quando não podia ir ao estádio tinha um ritual. Amanhecia com a camisa. Gostava 
de ver o jogo  na TV sozinho – sem comentários próximos. Nas derrotas ficava mal 
humorado.
No dia 11 de novembro 
de 2011, sua neta Clara – filha de Denise – celebrou nove anos de idade. Rocha 
saiu de Juiz-de-Fora e veio ao Rio de Janeiro comemorar numa festinha no Novo 
Leblon, condomínoo da Zona Oeste. No dia seguinte, foi ao Engenhão e viu seu 
Fluminense perder para o América-MG – numa derrota que tirou o time do sonho do 
tetra… então. Foi o último jogo que ele viu num estádio.
Em 5 de fevereiro de 
2012, Antonio Carlos Rocha assistiu na TV a vitória do Fluminense sobre o 
Arsenal de Sarandí por 1 a 0 . Três dias depois, uma embolia pulmonar apanhou 
Rocha dormindo. Era uma quarta-feira. Ele tinha 67 anos.
Rocha era o que podemos chamar de um tricolor ativamente fanático. Viajava para ver o 
time. Foi a Argentina duas vezes. Foi ao Chile. Viajou para o Nordeste. Tinha um 
acervo com mais de 100 camisas tricolores. Comprava todo modelo novo que saia – 
fosse do primeiro, segundo ou terceiro uniformes. Desde sempre, o Fluminense foi 
seu companheiro. Ao se aposentar, nos anos 90, transformou a paixão em 
literatura. Ele escreveu e publicou cinco livros sobre o tricolor das 
Laranjeiras: “Eu sou é tricolor!!!”, “Fluminense, 100 anos de futebol”, 
“Castilho”, “Castilho Eternizado” e “O Último homem da defesa”.
Em busca de material 
sobre o Fluminense, Rocha era incansável. Pesquisava, telefonava, apurava, 
garimpava em sebos e bibliotecas. Acumulou com isso um acervo de livros, 
recortes de jornal, revistas, publicações inúmeras. Como sócio-contribuinte, 
frequentava as   Laranjeiras mesmo morando a quase 200 quilômetros. Uma vez no 
clube, ele conversava, almoçava, vivia o Fluminense.
Rocha tinha especial 
devoção por Carlos José Castilho, o goleiro dos anos 50 que virou busto no 
Fluminense. Castilho, que era chamado de “Leiteria” por conta da sorte que o 
acompanhava (gíria da época), foi o “guerreiro” precursor. Em 1957,  amputou o 
dedo mínimo para voltar a jogar mais rápido. Daltônico e pegador de pênaltis, o 
goleiro foi bicampeão do Rio-SP e tricampeão carioca – na época em que o 
Fluminense ganhava muito e magramente, como aliás fez neste Brasileirão. Nas 
muitas críticas ao “futebol eficiente” que fez o Fluminense ser tetracampeão – 
um detalhe  ficou meio esquecido: o placar mínimo. O sufoco. O 1 a 0. Ou 2 a 1. 
Ou 3 a 2 no finzinho.
Apesar da vantagem imensa na tabela – que desidratou as teorias conspiratórias de 
ocasião – o Fluminense foi tetra suando. Ganhou muito e de pouco. Quase sempre 
no limite. Ganhou, em suma, como Fluminense. Teve Fred – implacável. Nem, 
imarcável. Gum e Eusébio (e Digão) soberanos. Carlinhos e Bruno, oscilantes mas 
sempre agressivos. Edinho, perseguido e defensivamente decisivo. Jean, criativo 
e operário. Deco, Thiago Neves, Wágner em brilhos ocasionais. Abel, criticado – 
mas firme. Mas teve, acima de todos, Diego Cavalieri – o melhor jogador do 
campeonato.
E Cavalieri teve, 
além do talento, uma impressionante amizade com a trave. Goleiro bom precisa de 
sorte, diz o clichê (Castilho assinaria embaixo -  ou na trave mais próxima). 
Cavalieri pegou pensamento em 2012 – mas algumas raras bolas que lhe escaparam 
beijaram o poste – como se o destino estivesse escrevendo Leiteria 2.0 em três 
cores em cada travessão deste Brasileiro. Ou como se quisesse escrever, a cada 
vitória magra: “Vence o Fluminense” como Fluminense.
No dia 11 
de novembro de 2012, Clara Rocha completou dez anos já sem a presença 
do avô. A família comemorou num playground no Novo Leblon – com uma festinha que 
aconteceu durante o jogo entre Palmeiras e Fluminense. Pelos fogos de artifício, 
Denise acompanhava o andamento dos gols. E comemorava em silêncio. O apito final 
trouxe um festival de estrondos – e a lembrança quase física do pai.  Uma 
sensação algo difusa – que misturava alegria, tristeza, saudade, adeus. E o 
pequeno segredo guardado. De certa forma, Denise sentiu que o pai fazia parte 
desse título. Quase… fisicamente.
Antes de morrer, Rocha tinha feito um pedido para as filhas: pretendia ser cremado e 
gostaria que suas cinzas fossem lançadas em dois lugares: metade em Ubá, metade 
no gramado do Fluminense Football Club nas Laranjeiras.  Em março, Denise e 
Simone foram até Ubá – onde espalharam a primeira metade das cinzas paternas na 
Praça São Januário. Faltava a segunda parte da missão.
Como fazer isso? As 
irmãs guardaram as cinzas remanescentes numa caixa durante três meses. Pensaram 
em entrar em contato com o Fluminense. Mas, numa sondagem inicial, ouviram que o 
clube dificilmente permitiria a “homenagem” (temendo, provavelmente, criar uma 
tradição).
Desistiram das vias 
oficiais, matutaram, consideraram até uma opção cinematográfica: alugar um 
helicóptero para sobrevoar as Laranjeiras e fazer o lançamento. Optaram por uma 
alternativa mais singela: o reconhecimento de terreno. No sábado, 5 de julho,  
Simone – que mora em Muriaé – e Denise – que vive no Rio – foram até as 
Laranjeiras para “conhecer” o Fluminense. Maridos, filhos e, secretamente, as 
cinzas de Antonio Carlos, seguiram juntos.
A preparação foi 
detalhada. Se houvesse uma chance, as irmãs Rocha não queriam perdê-la. Denise e 
Simone acomodaram as cinzas remanescentes em seis saquinhos plásticos. Guardaram 
os saquinhos na bolsa de Simone. Chegaram na portaria dizendo que queriam 
conhecer o clube. Circularam pelas dependências, visitaram sala de troféus, 
tiraram fotos,  foram até a piscina, ao tênis… e, enfim, chegaram ao 
campo.
Era um sábado algo cinza – e as arquibancadas estavam desertas. Não havia viv’alma 
nas arquibancadas brancas. Denise e Simone examinaram o perímetro e se 
aproximaram do portão que dava acesso ao campo. Água. Estava trancado. Não havia 
como entrar.  As irmãs se olharam em tristeza cúmplice. Pensaram em subir nas 
arquibancadas e jogar das cinzas de lá.
- Mas a distância era 
grande e achamos que as cinzas não iriam chegar no campo – explicou 
Denise.
Quando estavam 
prestes a desistir, a surpresa. Um senhor de cerca de 50 anos abriu o portão e entrou no gramado para… correr. Denise e Simone não 
hesitaram. Desceram degraus de arquibancada em desabalada carreira e partiram. 
Denise correu para o grande círculo com três saquinhos, rasgando, um por um,e 
deixando as cinzas do pai flutuarem sobre o gramado. Simone seguiu para a meta 
da Rua Álvaro Chaves e, debaixo dela, abriu seus saquinhos. A brisa espalhou as 
cinzas de Antonio Carlos Rocha no gol defendido por Castilho, Veludo, Cavalieri 
e tantos outros.
Um segurança chegou 
em silêncio. A cerimônia esbaforida tinha sido detectada. Elas precisavam sair. 
Denise lembrou assim do dia em que se despediu de verdade de seu pai:
-  Lá fomos nós…  
cada uma com as suas porções. Corremos e espalhamos o sonho de uma vida ali! 
Quando já estávamos terminando um segurança se dirigiu ao campo para pedir que 
saíssemos. Mas já tínhamos  conseguido jogar tudo! Saimos dali acompanhadas pelo 
segurança. Ele não falou nada e nós também. Acho que no fundo, ele estava 
respeitando nosso momento. Para nós era o funeral dele.
Do pó-de-arroz 
viemos,  ao pó-de-arroz retornaremos – anotaria um frasista mais ousado. O 
segurança trancou o gramado com cadeado. Denise e Simone foram embora – com a 
certeza do adeus cumprido. Quatro meses depois, debaixo de milhares de 
alucinados pés tetracampeões, Antonio Carlos Rocha continuava ali, anônimo. 
Tinha virado parte física do Fluminense visível – e também do invisível. Como 
Castilho, Pinheiro, Marcos Carneiro de Mendonça, Nelson Rodrigues e tantos outros… tinha se tornado um 
pedacinho do Fluminense maior. 
 
 
2 comentários:
Esse texto é o mais bonito que li nesses dias de comemorações do tetra. Muito emocionante, mesmo.
Bela homenagem a Antonio Carlos Rocha, um dos principais divulgadores da história do Fluminense.
Saudações Tricolores!
PC
Concordo. Foi o mais bonito que li também.
Tenho dois livros do Antonio Carlos Rocha e não sabia que ele tinha morrido.
Saudações Tricolores!
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