terça-feira, 13 de setembro de 2011

Mano e Preguinho

Eu vi tudo, Prego. Eu vi tudo.

Dez de outubro de 1979, Rua das Laranjeiras, 382, Rio de Janeiro. Dona Linda acorda no meio da noite e vê que seu marido não está na cama. Levanta-se e o procura pelo modesto apartamento. Ele está de pé, observando um quadro emoldurado em madeira e vidro, pendurado na parede da sala, com a inscrição: “João Coelho Netto, o Preguinho, Grande Benemérito Atleta. Fluminense Football Club, 22 de Janeiro de 1952″. Na ocasião da entrega do diploma, Preguinho declarara: “eu mal sabia falar e o Fluminense já estava em minha alma, em meu coração e meu corpo”. Dona Linda vê o marido de 74 anos, alto e ainda forte, enxugar uma lágrima que escapa, com as costas da mão direita. Comovida, aproxima-se e o conduz gentilmente de volta à cama. Seria a última vez que Preguinho contemplaria o certificado emitido pelo clube que tanto amava, por quem tantas glórias conquistara e do qual era uma lenda viva.

Sessenta e sete anos antes de derramar sua derradeira lágrima, João, aos 7 anos, embolava-se nas pequenas ondas da Praia de Botafogo. Emmanuel, o Mano, seu irmão mais velho, então com 14, ensinava-o a nadar. Mano acompanhava de perto, protetor, mas procurava não interferir e deixava o garoto se virar sozinho. O pequeno era valente, afundava e demorava-se, mas voltava à tona e enfrentava as ondas. Mano exclamava: você mais parece um prego, João!

Prego. A menção a esse apelido, que acompanhou João por toda a vida e popularizou-se no diminutivo, faz qualquer tricolor de boa cepa transpassar-se de honra e crispar-se de orgulho. Preguinho. O super-atleta do Fluminense, o atleta mais completo do Brasil.

O pai de ambos, Henrique Coelho Netto, escritor e poeta famoso, fundador da ABL, autor de 130 livros e, acreditem, exímio capoeirista, mudara-se para a frente do FFC. O intuito era criar os 7 filhos dentro do lema
“mens sana in corpore sano”. Para o desenvolvimento intelectual Coelho Netto implantou no clube as “vesperais de arte”, com recitais de poesia, sessões de literatura, ópera, teatro e dança, tranformando-o em concorrido centro cultural e social da Capital da República. Criou os filhos onde, em 1914, nasceria a Seleção Brasileira, e em 1918 seria construído o primeiro estádio do Brasil. A história da família Coelho Netto entrelaça-se e confunde-se com a do Fluminense.

Em função da educação imposta pelo pai, Preguinho transformou-se em algo parecido com um super-herói da vida real. Praticava e competia em nove, sim eu disse no-ve, modalidades esportivas: natação, remo, futebol, vôlei, basquete, saltos ornamentais, hoquei sobre patins, polo aquático e atletismo (salto em distância e altura, corridas curtas e longas). Ganhou nada menos que 387 medalhas, a maioria de ouro, e 55 títulos. Foi titular e artilheiro, por anos a fio, do Flu e da Seleção Brasileira, da qual foi capitão e autor do primeiro gol em Copas do Mundo, em 1930, no Uruguai. Uma de suas mais celebradas façanhas aconteceu em 1925, quando ganhou uma competição de natação na Praia de Botafogo, donde saiu, de roupão, para o clube. Lá, mudou de roupa a tempo de integrar o time de futebol e ser campeão do Torneio Inicio. Atuava como amador, e, mesmo após o advento do profissionalismo, jamais aceitou receber qualquer pagamento para defender o Tricolor.

Preguinho, entretanto, não se vangloriava de suas façanhas e conquistas. O motivo para tal modéstia era doloroso: ele carregava no peito a magoa da perda de seu irmão mais velho, e por isso não se permitia certas atitudes. Tenho, cá pra mim, que o furor esportivo desmensurado, quase insano e a energia sobre-humana, eram consequência direta dessa perda. Uma homenagem ao tutor e ídolo ausente. Uma necessidade de realizar, pelos dois, tudo que o irmão não pudera em função da partida prematura e inesperada.

Eis a bela e trágica história de Mano – Emmanuel Coelho Netto.

Mano, jogador de raça invulgar, era titular do Flu, tendo conquistado o tricampeonato estadual, de 1917 a 1919, integrando a que é considerada a melhor equipe da era do amadorismo . Em 1922, aos 24 anos, disputava peleja contra o São Cristóvão, no Laranjal, quando recebeu uma entrada violenta no abdome. É atendido com uma massagem, pelo treinador, que o aconselha a não retornar ao jogo. Acontece que naquela época ainda não havia substituições e Mano recusou-se a desfalcar o Tricolor. Retornou, com hemorragia interna, à ponta direita e jogou em condições precárias até o apito final, sob os olhares apreensivos de todos.

Eis a verdade, amigos: nosso Mano sangrou até a eternidade em honra do Fluminense Football Club. Saiu das Laranjeiras para o leito de casa onde agonizou por nove dias e nove noites, antes de nos deixar. Uma sede insaciável o acometia, mas toda água sorvida vasava-lhe pelas artérias, qual vaso furado. Alternava momentos de sofrimento e serenidade, e somente chorou quando seu pai anunciou-lhe a chegada do sacerdote para ministrar-lhe a extrema unção. A possibilidade de perecer não lhe passava pela cabeça, pois, assim como Preguinho, não pensava em derrota, apenas no embate, ao qual entregavam-se por inteiro. Nas palavras de seu pai - “Voltei-me. Ele inclinara a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se.”

Em primeiro de outubro daquele ano, o Berço da Seleção fervilhava, em dois cenários contrastantes. De um lado, uma multidão de 25 mil pessoas, lotação máxima do maior estádio do país, chegava excitada. Era o dia do esperado embate entre Brasil, atuando de tarjas negras, e Uruguai, pelo Sul-americano do Centenário da Independência, sediado nas Laranjeiras. De outro, um cortejo fúnebre de duzentos carros, com representações de diversos clubes, acompanhava o corpo do jovem guerreiro rumo ao cemitério. Dois anos após o episódio, Coelho Netto escreveu “Mano, o livro da saudade”, relato sobre a agonia do filho.

Ao adentrar os Céus, Mano foi recebido por doze legiões de anjos perfilados, em respeitoso silêncio. À sua passagem, oravam: Pai, recebei este filho em Vossa casa e concedei-nos sua coragem e abnegação, para que bem possamos combater o mal.

Cinquenta e sete anos depois, os mesmos anjos receberam Preguinho, com a mesma reverência. À sua passagem, oravam: Pai, recebei este filho em Vossa casa e concedei-nos sua força e inquebrantável determinação, para que bem possamos combater o mal.

O reencontro caloroso dos irmãos inundou de paz o coração dos anjos, que sorriram. Pela primeira vez, Preguinho permitiu-se vangloriar de seus feitos imortais. Estava ansioso por relatar a Mano tudo que realizara, após sua partida, na defesa das três cores que traduzem tradição. Mas foi interrompido pelo mais velho, com um abraço, um largo sorriso e as seguintes palavras: Eu vi tudo, Prego. Eu vi tudo.


(Por Edu Rocha em Fluminenseetc )

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O Fla-Flu de 1919

"1919. Estamos chegando à rua Paissandu. Tudo no campo do Flamengo tem a tensão da vitória. A bilheteria fecha. Não cabe mais um alfinete. Antes do apito inicial, alguém quebra a cabeça de alguém com uma garrafada. As mulheres abanavam-se (até hoje, não entendo a burrice feminina de não usar leque nesta Sibéria de fogo). Os dois times estão em campo, formados. O juiz apita. Começou.

Na tribuna de honra estava o Presidente da República, Epitácio Pessoa. Sim, Epitácio antes das cartas falsas, de 22, dos 18 do Forte. Fisicamente pequenino, ele andava tenso, ereto, de fronte alçada, como se estivesse ouvindo um permanente e fantástico Hino Nacional.

Começou o Fluminense x Flamengo de 1919. Antes, porém preciso falar de outras figuras, além de Epitácio. Por exemplo: - o juiz. Poucos, raríssimos sobreviveram àquele jogo. Morreram Epitácio, quase todos os jogadores, as duas torcidas, os bandeirinhas. Os bandeirinhas, de pingar sobre o seu nome e a sua arbitragem uma dúvida, uma suspeita.

Mas o povo precisa chamar um juiz, qualquer juiz, de ladrão. Reside aí talvez a cruel, a fatal volúpia do futebol. O torcedor morreria de pena, de frustração, se não xingasse de gatuno o homem do apito. Se ainda hoje é assim, antes era pior. Em nossa época, o árbitro ganha: todas as suas virtudes e todas os seus defeitos são remunerados. Naquele tempo, porém, o juiz não recebia um único e escasso tostão. E, se cometia um erro, e mesmo sem cometer erro nenhum, logo explodia o clamor de vendido, comprado, ladrão.

E, aos oito minutos de jogo, pênalti contra o Fluminense. Ora, era uma partida que trazia, em seu ventre, o campeão. Como em 50 para o Brasil, o empate, o simples empate, daria o título ao Tricolor. Estava lá, na tribuna de honra, o Presidente da República. Até Epitácio se deixara tocar pela magia da batalha. Deve ter perguntado, baixo, ao ajudante-de-ordens: - "Pênalti? Que é pênalti?"

Eis a opção do jogador que cobra o pênalti: - ou bomba ou bola colocada. O juiz apita. Até o Presidente da República está ferido de angústia. Ah, Epitácio vai pouco a futebol e é um desses espectadores capazes de perguntar: - "Quem é a bola?" Perturba-o, como um mistério, a mise-en-scène do pênalti. A cobrança de uma penalidade máxima é o momento religioso da partida.

Ora, Marcos sabe que ele é tudo. Sim, é o deus do momento. Ele vai salvar ou perder o tricampeonato. Concentração. Serenidade intensa, calma apaixonada. Nunca sua visão foi tão límpida e tão exata. Tudo vai depender de um reflexo fulminante. Ademar Martins caminha para a bola. Jamais alguém foi tão olhado como o goleiro na hora do tiro de misericórdia. Não existe mais ninguém no estádio. Nem o artilheiro da falta. Nem o juiz, que a marcou. O próprio Presidente da República tornou-se, de repente, secundário, nulo. É o Chefe da Nação, mas o pênalti fez o estadista um pobre diabo.

A própria paisagem cessa de existir. Foi disparada a bola. E Marcos defende, como se diz hoje, parcialmente. Mas "defender parcialmente" um pênalti é um milagre. Mas antes do tiro e da defesa, Marcos pensa: - "Se eu defender tenho que mandar a bola para os lados". Ademar Martins olha, apavorado. Já não entendera a marcação do pênalti e muito menos a defesa de Marcos. A um milímetro da vitória, subitamente a perdia. Na tribuna de honra, o olhar de D. Guilhermina Guinle tem uma doçura mais viva.

Mas continua o perigo. Nova bomba, à queima-roupa. Reflexo prodigioso de Marcos. O Presidente da República tem um espanto de menino. Não entende que o mesmo pênalti seja desdobrado em três. Marcos defende a primeira vez, a segunda vez. E vem uma terceira bomba, mais vingativa, mais cruel do que as outras. Desta vez, ele se agarra e se abraça à bola como a um fado. Três defesas rigorosamente impossíveis. E ninguém percebeu, porque ninguém enxerga o óbvio, que estava, ali, o Sobrenatural de Almeida.

Tricolores se abraçavam e se beijavam. Moças desmaiavam. Defendido o pênalti, tudo voltou à sua hierarquia. O Presidente da República podia ser novamente Presidente da República. E o ajudante-de-ordens, distraído por um momento da adulação, da subserviência, voltara a lamber com a vista S. Exa.. E o azul da tarde escorreu sobre o povo. Debaixo dos três paus, estava Marcos ainda crispado. Vivera um instante de onipotência. A fitinha roxa parecia vermelha de sangue rútilo.

Ah, o brasileiro de 1919 tinha uma estrutura muito mais doce. E era outro o Brasil. Um turista que por aqui passasse, havia de anotar no seu caderninho: - "Isso é a pátria do fraque". Mas eis o que importa destacar: - naquela época, o Presidente da República podia ir a um campo de futebol, ver um Fluminense x Flamengo.

Aí está o feio e negro abismo cavado entre as duas épocas: - em 1919, quando Epitácio Pessoa apareceu na tribuna de honra, a multidão bateu palmas, de pé: hoje, o Poder não pode entrar no ex-Maracanã, agora Mário Filho. No maior estádio do mundo, vaia-se até minuto de silêncio. E assim, vaiando qualquer um, o homem de arquibancada tem uma sensação de onipotência.

E, de repente, Bacchi toma a bola. Dribla um, dribla outro. É uma penetração fulminante. Não era jogador de bomba. Mas sabia empurrar a bola no canto certo, desintegrando o goleiro. Ele sentiu, farejou, apalpou o gol, antes de fazê-lo. E, então, ergueu-se do povo o uivo ou, por outra, o mugido. Foi um mugido. Gol, gol. Do Fluminense.

Há, entre cada um de nós e esse primeiro gol de Bacchi, meio século. Cinqüenta anos. Aquela multidão já morreu, quase toda já morreu. Uns poucos sobrevivem. Eu desejaria perguntar a um dos sobreviventes se, no gol de Bacchi, o canhão do Tota Rodrigues soltou um dos seus estrondos medonhos. O estádio tremeu. As mulheres desfaleciam. E não sei qual era mais formidável, se a euforia Tricolor, se o silêncio Rubro-Negro."

(Nelson Rodrigues)

sábado, 3 de setembro de 2011

Pinheiro Eterno

"Castilho, Píndaro e Pinheiro... Os tricolores não se esquecem, mesmo os que não viveram aquela época. Com este trio de ferro defendendo sua cidadela, o Fluminense tinha o time mais temido do Brasil. Com eles, ganhamos o Campeonato Carioca de 1951 e o Mundial de 1952. Foram três verdadeiras lendas do futebol brasileiro. Três nomes gravados eternamente nas antologias do esporte. Três nomes que, até hoje, parecem formar um só.

Já após a saída de Píndaro, Castilho e Pinheiro continuaram levantando taças pelo Fluminense: foram campeões cariocas de 1959 e campeões do Torneio Rio-São Paulo em 1957 e 1960. Em 1954, ambos foram titulares da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, e só saíram derrotados pela lendária Hungria de Puskas e Kocsis. Por uma injustiça do destino, Pinheiro não foi convocado para os Mundiais de 1958 e 1962, e assim deixou de conquistar o único título que faltou em seu currículo. Azar da Copa do Mundo.

Ontem, infelizmente, faleceu Pinheiro. E adianto que bandeiras hasteadas a meio pau e minutos de silêncio não serão homenagens suficientes. Amigos, o Fluminense perdeu ontem um mito, um símbolo de sua história, um ícone de suas glórias, uma glória em si. Pinheiro é o segundo atleta com mais atuações com a camisa tricolor (600 partidas), perdendo nesse quesito apenas para seu companheiro Castilho.

Na ocasião de seu aniversário de 79 anos, em janeiro último, escrevi as seguintes linhas:

"Amigos, imaginem um zagueiro com 600 atuações por seu clube. Imaginem um zagueiro que, durante doze anos, foi titular absoluto deste clube. Imaginem um zagueiro titular da Seleção Brasileira em uma Copa do Mundo. Imaginem um zagueiro que era um dos mais temidos cobradores de pênalti do país. Imaginem João Batista Carlos Pinheiro."

Foi a última chance que tive de homenagear o herói tricolor em vida. Na noite desta terça-feira, Pinheiro sucumbiu na cruel luta contra o câncer.

Presente em praticamente qualquer Seleção Histórica do Fluminense, Pinheiro é um dos grandes ídolos tricolores de todos os tempos. Após a longa carreira como jogador, voltou às Laranjeiras para treinar os juniores e os profissionais. Foi campeão da Taça Guanabara de 1971 e da Taça Teresa Herrera de 1977. Como treinador, dirigiu o Cruzeiro na década de 90, conquistando a Copa do Brasil de 1993 e lançando o fenômeno Ronaldo nos profissionais.

Pinheiro, herói tricolor, descanse em paz. Sempre que o Fluminense entrar em campo, você estará com a gente. Isto é a vocação da eternidade".

(Paulo Cezar Filho, em 31 de agosto de 2011)

http://jornalheiros.blogspot.com/2011/08/pinheiro-eterno.html