"Essa é a história de uma mãe e seus dois filhos – e começa numa das mais tristes noites da história do Fluminense Football Club. O tricolor das Laranjeiras já foi muitas coisas – já foi timinho, já foi leiteria, já foi sobrenatural. Mas naquela noite colorida de 2 para 3 de julho de 2008, quando baixou a névoa de pó-de-arroz sobre o Maracanã, parecia que o Fluminense tinha perdido a chance de ser maior.
Nossa história começa logo após o fim daquela partida – na qual o Fluminense venceu a LDU por 3 a 1. O resultado levou a decisão da Taça Libertadores para os pênaltis. Neste breve e infinito intervalo – entre jogo e penais – é que encontramos dois torcedores nas cadeiras especiais – uma mãe e um de seus filhos. A tensão é praticamente palpável. A mãe olha para o filho, o pequeno Caio, sete anos, e transforma angustia em otimismo:
- Meu filho, agora somos campeões! Nos pênaltis, a gente é time grande, vamos ganhar! – grita.
O Fluminense perde o primeiro pênalti… depois o segundo. Conca e Thiago Neves. A mãe olha para o filho…
- Mas você disse que a gente ia ganhar, mãe…
As lágrimas brotam nos olhos – mas o choro fica preso na garganta. Não sai. Engasga. Washington perde o pênalti decisivo. Nas palavras da mãe:
- O estádio fica em silêncio, os olhos de meu filho cheios, meu coração destruído.
A LDU ainda comemora no gramado quando mãe e filho sobem a escadaria das especiais para chegar aos elevadores. O choro materno não desce. De repente, um outro jovem torcedor – com olhos cheios – começa a cantar o hino do clube.
- … fascina pela sua disciplina, o Fluminense me domina…
É cortado por uma outra voz, revoltada:
- Perdemos, seu idiota. Tá cantando por que?
O cantor ignora e continua cantando. A mãe percebe que seu filho também canta , baixinho. Aos poucos, o hino cresce – ganha corpo – toma o saguão inteiro – como um réquiem de Mozart para aquela finada campanha. Mãe, filho e milhares outros cantam em coro.
- … eu tenho amor ao tricolor! Salve o querido pavilhão… das três cores que traduzem tradição…
A canção na derrota é o depoimento supremo de amor pelo time – o perdão diante do insucesso, a afirmação que torcemos por aquelas cores de qualquer jeito – e que toda circunstância é secundária. Mãe e filho deixaram o Maracanã tristes, mas de alguma forma mais tricolores, mais profundamente tricolores.
Debaixo da angustia materna, o subtexto. Caio tem um irmão gêmeo, Marco. Se Caio torce pelo time da mãe, o Flu; Marco torce pelo time do pai, o Fla. São gêmeos não-idênticos, apenas muito parecidos. Ali no Maracanã, com a névoa branca baixando, a mãe surdamente temia… temia perder Caio. Temia ver Caio escapar na direção de outras cores.
Ano e meio depois, no fim de 2009, Fla e Flu estavam em pontos opostos da tabela do Brasileirao. O Fla precisava de uma vitória no Maracanã para ser campeão. O Flu precisava de um empate contra o Coritiba para escapar do rebaixamento.
Na casa de Caio e Marco havia duas TVs ligadas. Uma acompanhava Flamengo x Grêmio. A outra estava ligada em Fluminense x Coritiba. O primeiro jogo acabou antes – com o Fla campeão – e Marco veio gritar, celebrar, cantar seu título na sala com mãe e irmão. Encontrou silêncio e angústia. Faltavam dez minutos para o Flu se livrar do rebaixamento.
Marco silenciou também – e calado acompanhou o alívio tricolor. A última noite futebolística de 2009 terminou feliz na casa dos gêmeos. Quão irônico, o destino – capaz de tirar o futebol do Fla de dentro do Flu em 1912… para quase cem anos depois produzir dois irmãos tão próximos – um tricolor e um rubro-negro, debaixo do mesmo teto, felizes de modo distinto. Que roteiro Nelson Rodrigues, que dizia que Fla e Flu eram os Irmãos Karamazov do futebol brasileiro, não escreveria?
E então chegamos a dezembro de 2010 – quando o Fluminense encontra de novo sua história. Nós, que nada sabemos, deveríamos vez por outra presumir. Presumir que o primeiro titulo de um estádio chamado João Havelange seria tricolor. Presumir que este titulo viria pelo placar eternamente tricolor – o 1 a 0, o gigantesco, inesquecível 1 a 0 – o 1 a 0 jogando mal, o 1 a 0 furando a bola, o 1 a 0 feio, abjeto, lindo.
Quem diria, um ano antes, que o Flu suando e desesperado diante do Coritiba, resistindo a toneladas de tensão, estaria ali, a um passo da vitória – a um passo de um título? Um passo – um chute – um gol.
Movido a mala, o frágil Guarani parecia uma muralha verde, com duzentas pernas e sangue frio. Melhor campanha, melhor time, adversário desfalcado e rebaixado – nenhuma informação seria capaz de tranqüilizar o torcedor que passou a semana suando em três cores. Não, não havia facilidade capaz de remover a sina tricolor. As grandes vitórias do Fluminense são sempre mínimas, irrisórias.
E quis o destino, com suas mãos seletivas, que o gol viesse num lance em que a mala jogou contra o Guarani. Lembremos. O gol começa num chutão pra frente de um zagueiro do time campineiro. O único atacante do Bugre, Reinaldo, disputa no alto e perde para Leandro Eusébio. Enquanto a bola viaja, Apodi, o lateral velocista, dispara com vontade inaudita, esperando um raspar de bola, uma sobra. Não. Ela fica com o Fluminense. E cai com Carlinhos na esquerda, nas costas do despencado Apodi. O zagueiro Aislan sai na cobertura – e também com afobada dedicação, se joga aos pés do lateral. Carlinhos, esperto, evita o combate e cruza. No primeiro pau, Washington com apenas um marcador (o alto Aislan estava fora da área), raspa… e Emerson escreve história.
Emerson, do Fla para o Flu, o único bicampeão desses anos cariocas de Brasileirão. Emerson, o Sheik, que passou o campeonato enfrentando contusões. Emerson, com nome de pensador americano e sorriso de malandro carioca, chuta – a bola passa entre as pernas de… Emerson, o semi-anônimo goleiro do Bugre. E o 1 a 0 tricolor está pronto.
É um 1 a 0 Muricy, um 1 a 0 Conca – um 1 a 0 tricolor de cima a baixo, cabo a rabo. Um 1 a 0 que tira as metáforas rodrigueanas da cartola – a vocação da eternidade, os 40 minutos antes do nada. O Fluminense chutou o quase pro fundo da rede – e de modo extremamente tricolor. Como em 1984 – foi 1 a 0. Como em 2007, foi 1 a 0. Como em 1983, foi 1 a 0. O um a zero maior – como não percebemos antes? Ora direis… houve o 3 a 2, o 2 a 1 – sim – mas nada é tão fluminense como o 1 a 0. Um, zero – quase um código binariamente tricolor – o placar minimalista por excelência.
Na arquibancada do Engenhão, com o gol, a mãe de Caio chora de novo. Chora dois anos depois da Libertadores, um ano depois da arrancada anti-queda – um choro amplo, que não termina. Chora e abraça o filho. E continua a chorar. Os minutos restantes são proverbiais, o Guarani não ameaça, a tensão vai se diluindo. Quando o jogo acaba, mãe e filho começam a descer as rampas do Engenhão. Não é o hino que eles cantam – é Radio Pirata, ou quase.
- ÔÔÔÔÔÔÔ… vamos pra cima Flusão…
As bandeiras se misturam – 40 mil pessoas, uma voz apenas. O Fluminense é campeão brasileiro.
- …Quero gritar campeão… Vamos lutar… por mais essa taça…
A mãe olha para o filho cantando… se lembra da frase de dois anos antes.
- Mãe, você disse que a gente ia ganhar, mãe….
Ao lado de Caio está Marco, rubro-negro, vestindo a camisa do Fluminense, torcendo pelo Fluminense – com a bandeira do Fluminense. Quis ir ao jogo com o irmão. A torcedora-mãe olha para os gêmeos bicampeões – como Fla e Flu – e se lembra do choro anterior. Ela enxuga as lágrimas do presente – que nublam na retina as imagens que a memória há de guardar. Um filho gira a camisa e canta, o outro empunha sua bandeira casual. O futebol, que tanto nos dribla e derruba, às vezes traz instantes eternos como esse. Silenciosamente, ela torce por uma tardia conversão de Marco – mas isso importa menos. O que importa é estar ali – cantando. Cantando. E cantando."
(Gustavo Poli)
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
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3 comentários:
Coisa linda esse texto. :)
caramba amor, que lindo o texto. Um espetáculo!!
Me arrepiei todo! incrível
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